Na semana passada, a Bienal de Arquitetura de Veneza anunciou que adiará a data de abertura da Biennale para o dia 29 de agosto, mas que entretanto, manterá a data encerramento do evento no dia 29 de novembro, reduzindo a duração do mais importante evento internacional do mundo da arquitetura de seis para apenas três meses. A mudança de planejamento da Biennale é mais uma resposta à crise mundial causada pela pandemia de coronavírus ou COVID-19, a qual tem se agravado ao longo das últimas semanas provocando uma onda de cancelamentos e adiamentos de importantes eventos ao redor do mundo.
Como a Itália é hoje o país que mais sofre com a pandemia de coronavírus, com mais de dezessete mil casos confirmados e quase 1.300 mortes registradas até o último sábado dia 14 de março de 2020, a Biennale afirmou que a decisão foi tomada de forma consciente e responsável, principalmente devido as consequências que atual estado de emergência poderá causar na preparação e organização do evento na cidade de Veneza.
Arquitetos estão acostumados a lidar cotidianamente com muitos desafios. Por isso, alguns de nossos colegas se posicionaram contra o adiamento do evento, defendendo uma posição bastante crítica à decisão da Biennale. Eles alegam que uma crise mundial destas dimensões ofereceria à Bienal uma oportunidade única para se posicionar e defender a arquitetura como uma importante ferramenta de combate à futuras pandemias, ao invés de ceder às pressões e ficar de braços cruzados sem fazer nada.
Hoje, Veneza parece uma cidade fantasma. A decisão da Biennale em adiar o evento também cria uma sensação de insegurança, deixando o pressentimento de que a Bienal de Arquitetura deste ano possa vir a ser cancelada definitivamente. Se isso vier à acontecer, a suspensão marcaria uma mudança considerável na essência da própria Biennale.
Não é nenhuma novidade que o espírito da Bienal de Arquitetura de Veneza está mudando. Ao longo das últimas décadas, o principal evento no calendário da arquitetura tem se transformado em uma espécie de espetáculo hollywoodiano, pavoneando ao redor de seus ilustres convidados ao invés de dedicar suas atenções ao que de fato mais importa em uma Bienal: as idéias propriamente ditas.
Eu realmente acredito que este novo desafio, talvez o maior já enfrentado por esta geração, poderia ser uma oportunidade única para a comunidade de arquitetos do mundo todo. Enquanto a notícia de adiamento da Bienal está sendo vista pelos turistas e pelas próprias estrelas da festa como algo bom, os arquitetos deveriam ver isso como um prejuízo para a prática profissional.
Como profissionais criativos e que vivem para solucionar problemas, arquitetos e arquitetas deveriam encarar a realização da Bienal deste ano como uma oportunidade para trazer o foco de volta para o que mais importa. Esta crise global não deve ser vista como um problema, mas ao invés disso, como uma possível solução.
Curiosamente, o tema da Biennale deste ano proposto pelo curador Hashim Sarkis, “Como viveremos juntos?”, parece ser exatamente o que o mundo todo está se perguntando neste exato momento. Esqueçamo-nos por um momento que a Bienal abrirá suas portas apenas no mes de agosto. Talvez em agosto, esta pergunta já nem faça mais sentido depois de tudo o que poderá vir a acontecer.
Este questionamento deve ser feito hoje, aqui e agora. Nem amanhã e nem depois de amanhã. Hans Hollein disse que a Bienal opera como um "sismógrafo" do nosso tempo, um instrumento que serve para identificar, ampliar e registrar a maneira como a arquitetura lida com os principais desafios do nosso tempo. E de que maneira a arquitetura poderia oferecer soluções para minimizar as consequências desta nova crise mundial?
A nossa realidade hoje, independentemente da realização ou não da Bienal de Arquitetura deste ano, é que estamos sendo forçados a nos adaptar a uma nova situação, algo que nunca havíamos experimentado antes. É apenas uma questão de tempo para que mais cidades, regiões e até países sejam colocados em quarentena. Autoridades do mundo todo estão sugerindo aos seus cidadãos que permaneçam dentro de casa, que evitem aglomerações e deslocamentos desnecessários, impondo um distanciamento social mútuo e forçado.
Embora inesperado, estamos experimentando uma profunda transformação na maneira com que nos relacionamos uns com os outros. Ainda que agravada pela atual situação, a crise das relações humanas não é nenhuma novidade. A pandemia de coronavírus pode ser um catalizador de algo que deveria estar sendo discutido à muito tempo pela comunidade de arquitetos. Felizmente ou infelizmente, precisamos começar a discutir estas questões agora, bem no meio do olho do furacão, e incentivar todos os nossos colegas a repensar a maneira como viveremos juntos, com ou sem bienal de arquitetura. Esta bienal – a qual todos nós devemos nos engajar – deve ser aquela que nos inspira a pensar novas soluções espaciais e que nos permita continuar a viver juntos, de forma coesa, equilibrada e saudável.
Por que não fazer da Bienal um espaço de reflexão sobre as novas condições humanas e espacias? Por que, ao invés de adiar a realização do evento e manter uma programação que pouco tem a ver com a atual conjuntura do mundo, não manter a data de inauguração ou até antecipá-la, estimulando a todos os participantes a se envolverem com o tema, investindo este tempo de reclusão para pesquisar e desenvolver soluções para os novos desafios?
Neste momento crítico, ao invés da Bienal decidir não fazer nada, ou apenas deixar para depois, ela deveria utilizar este tempo pra rever seus conceitos, para reinventar-se. Deveríamos aproveitar esta oportunidade para transformar o evento da Bienal em um laboratório de pesquisa e desenvolvimento de soluções para os nossos problemas mais urgentes. Não podemos esperar sentados por um desastre já anunciado. Deveríamos utilizar este momento de incertezas e dificuldades para nos unir, para juntar forças em busca de uma solução para uma das maiores crises que a nossa profissão já vivenciou.
É verdade que ao longo das últimas décadas a Bienal de Arquitetura de Veneza vem tentando nos alertar sobre as mudanças que estão acontecendo no mundo e como devemos agir em relação a elas. Chegou a hora de sermos postos à prova. Nós arquitetos, somos os principiais responsáveis por encontrar respostas e soluções para os principais desafios do nosso tempo, deveríamos ser “a linha de frente” como Alejandro Aravena disse em 2016, ano que foi curador da Bienal. Ou, parafraseando Rem Koolhaas no ano de sua Bienal: “já passou a hora de apenas repensarmos a nossa prática profissional, chegou a hora de reinventar os nossos próprios princípios.”
Revisitando os tópicos dos últimos 10 anos da Bienal, quando sabíamos que a mudança estava por vir, mas não conseguimos agir de acordo com ela:
A condição de hoje nos apresenta um novo "terreno comum" para a arquitetura. - David Chipperfield
Esse formato lidaria, realmente, com o fronte. - Alejandro Aravena
Está na hora não apenas de repensar, mas recriar nossos "fundamentos". - Rem Koolhaas
Permitir que todos participem e demonstrem “generosidade”. - Yvonne Farrell/Shelley McNamara
Clima, biodiversidade, rastreamento do impacto humano, quarentena, distanciamento social ... o novo contrato espacial é agora. Arquitetura, por favor.
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